domingo, 25 de junho de 2017

Conhecendo o inimigo...

A condenação do condenado
25/06/2017 02h55

A liberdade de expressão é um dos valores supremos da democracia e uma das bases da prática jornalística. O pluralismo de ideias, posições e opiniões está na essência do bom jornalismo. Limitações à liberdade de expressão e ao pluralismo prejudicariam de imediato os leitores, certo? Nem sempre e nem todos pensam assim.

Criada há mais de 40 anos, a seção de artigos Tendências/Debates, publicada na página 3, é uma das vitrines do projeto editorial da Folha. É objeto de comentários e críticas frequentes dos leitores.

Tem como base um dos 12 princípios editoriais da Folha, recém-divulgado, que prega cultivar a pluralidade e registrar com visibilidade pontos de vista diversos em questão controvertida ou inconclusa.

No início deste mês de junho, a Folha publicou o artigo "As ruas e as urnas", de autoria de José Dirceu, ex-deputado (PT-SP) e ex-ministro do governo Lula. Dirceu obteve perdão de sua pena no mensalão, mas foi condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha em razão da Lava Jato. Em maio, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus, após dois anos de cadeia.

No texto, Dirceu chama o governo Temer de golpista e usurpador, prega uma revolução política, econômica e social e pede eleições diretas já. Diz que não há espaço para conciliação e que "é necessário, para o bem-estar social do país, dar fim à armadilha de uma falsa harmonia nacional e um ludibrioso salvacionismo contra a corrupção". Não se refere à sua própria condenação nem às várias acusações de corrupção a que responde.

O artigo provocou a revolta de leitores: "Por mais que admire a liberdade de expressão da Folha, acho um desserviço publicar artigo de um cidadão como Zé Dirceu, envolvido em crimes na Lava Jato e condenado a 32 anos de reclusão"; "Meu sentimento é de revolta. Abrir espaço para José Dirceu é afrontar a inteligência das pessoas"; "Surreal e revoltante abrir a Folha e se deparar com artigo de um condenado, chefe de quadrilha, tecendo comentários sobre a "coalização golpista".

Reações desse tipo ocorrem com alguma frequência. Leitores contestaram artigos recentes do ex-deputado Eduardo Cunha, também condenado, e do presidente Michel Temer, acusado na Lava Jato.

Mas o grau de ferocidade contra o artigo de Dirceu parece só encontrar paralelo quando, em janeiro de 2000, a Folha publicou artigo de Fernando Collor de Mello. O ex-presidente ficara por oito anos afastado da política por ter tido seus direitos políticos cassados e, naquele momento, apresentava-se como pré-candidato à Prefeitura de São Paulo.

Na ocasião, a Folha justificou a publicação relembrando seu "compromisso inarredável com o pluralismo". No caso de Dirceu, o jornal não publicou explicações, apesar da cobrança de leitores. Como representante deles, questionei a Secretaria de Redação. A resposta manteve o espírito da que foi dada há 17 anos: "A publicação insere-se no compromisso do jornal com o contraditório, o pluralismo e a liberdade de expressão", afirmou Vinícius Mota, secretário de Redação.

Como provocação ou ironia, leitores perguntaram se o jornal daria espaço a condenados como Marcola (líder do PCC), Fernandinho Beira-Mar (traficante), Suzane von Richthofen (assassinato dos pais).

Mota respondeu: "Seria uma boa discussão, a ser feita caso a caso, mas a tendência seria a de publicar, desde que não houvesse incitação ao crime ou ofensas à honra de terceiros". Minha posição é a mesma.

Discordo de quem não reconhece o direito de um condenado pela Justiça a se expressar. O crime cometido, pelo qual foi punido, não inclui a pena de silêncio. A reiterada defesa do pluralismo está na base do Projeto Folha e do sucesso do jornal. Pode provocar queixas de leitores, mas assegura diversidade jornalística, política e cultural.

Ressalvo, no entanto, que a pluralidade não desobriga o jornal do seu papel de editor, essencial na era da multi-informação. Um artigo eivado de erros, distorções, propagandas e proselitismo deve receber contrapontos críticos imediatos. Se não o fizer, o jornal abrirá mão de seu papel de curador jornalístico.

Cabe repetir frase de uma amiga de Voltaire, às vezes atribuída erroneamente ao escritor francês do século 18: "Detesto o que escreve, mas daria minha vida para tornar possível que você continuasse a escrever".


paula cesarino costa
ombudsman

Está na Folha desde 1987. Foi Secretária de Redação e editora de Política, Negócios e Especiais. Chefiou a Sucursal do Rio até janeiro de 2016. Escreve aos domingos