domingo, 24 de abril de 2022

O ESTALO DO PADRE VIEIRA...

Parece que não passa de uma lenda, mas dizem que antes de vir a ser o incomparável orador e autor dos famosos “Sermões”, o Padre Antônio Vieira foi muito burro, totalmente obtuso. Também afirmam os seus biógrafos que maior do que a sua burrice era a sua devoção pela Virgem Maria, a quem sempre orava, pedindo de maneira fervorosa, que lhe fosse concedido o saber e o entendimento que não possuía. Deu-se, então, que um dia, rezando para ela e inflamado pelo desejo do saber, o jesuíta sentiu uma espécie de estalo, tão forte, que teria experimentado um tipo de agonia, como se fosse desfalecer. Mas em seguida, viu-se com o sentido desembotado, adquirindo, instantaneamente, "clareza de entendimento, agudeza de engenho e sagacidade de memória", como afirma um de seus biógrafos, André de Barros. Esta expressão — "estalo de Vieira" — foi de uso popular durante séculos, sobretudo no nordeste brasileiro, para designar uma súbita e miraculosa compreensão de algo que, até aquele momento, fora nebuloso para alguém. E, sendo ou não sendo a história verdadeira, com certeza, em relação a determinadas coisas, situações ou pessoas, todos nós já experimentamos, alguma vez, a sensação de ter um desses “estalos” de Vieira. Contudo, o que me faz pensar nisto não é nenhuma revelação que, porventura, eu haja recebido da Virgem ou de qualquer outra Maria, mas a simples lembrança que me ocorreu de um vizinho de apartamento, que tive certa vez. Era uma pessoa afável, prestativa e, não seria exagero dizer, até generosa. Vizinho bom estava ali, para ajudar ou obsequiar os outros moradores do prédio. Tratava-se de uma pessoa algo tímida, mas que destravava a língua e conseguia fazer uma longa dissertação, desde que alguém tangenciasse um dos dois assuntos da sua exclusiva preferência: pescaria e culinária. Quando o assunto não era provocado por outra pessoa, ele mesmo logo dava um jeito de focar a conversa numa pescaria que havia feito ou que ainda haveria de fazer. Contava as histórias, sem maiores exageros de pescador, explicava sobre a escolha das iscas, dava dicas sobre o jeito de lançar e recolher a linha, discorria sobre as diversas espécies de peixes e sobre as “manhas” de cada uma delas. E quando se entusiasmava, fazia gestos de lances imaginários no ar, para demonstrar a técnica que desenvolvera ao lançar o anzol e a chumbada na água. Mas o que iluminava o seu rosto, de verdade, era falar das suas peripécias nas artes da cozinha. Realmente o homem era um mestre, em matéria de culinária. Tinha uma mão boa de tempero e gostava de usá-la. Preparava pratos de muito sabor e a sua alegria era chamar algum vizinho para almoçar ou jantar em sua casa, quando não vinha com uma pequena travessa ou terrina, para que o agraciado da vez saboreasse aquilo em casa mesmo. Tive a sorte de ser o escolhido para essas experiências gastronômicas algumas vezes e afirmo que nunca me decepcionei. Mesmo quando ele, num exercício de falsa modéstia, “fazia menos” do apetitoso prato: — Estou trazendo, mas desta vez não ficou bom como fica, não... Deixei o tempero refogar demais e acabou com um gosto de meio queimado. Conversa! Estava só provocando o elogio, porque ficara, como de costume, delicioso. E eu nunca economizava os elogios, até mesmo para não ser excluído do rol dos agraciados. Mas havia uma coisa nele que, de fato, me irritava: de vez em quando, para retribuir as suas gentilezas culinárias, eu o convidava, com a mulher e os filhos, que eram pessoas de pouca vida social, para almoçarem ou jantarem em algum restaurante, dentre aqueles que eu mais apreciava. Eles aceitavam o convite, a mulher e os filhos, visivelmente, adoravam aquele programa fora de seus hábitos, mas ele tinha sempre uma restrição a fazer à comida que escolhêramos. Não importava qual fosse o restaurante ou o tipo de comida, ele sempre encontrava alguma imperfeição naquilo que pedíamos: — Tem molho de tomate demais, faltou um pouco mais de sal, se fosse eu, teria acrescentado um pouco de couve ao prato... Depois de algum tempo, passei a evitar fazer sugestões, mesmo que eu estivesse mais familiarizado com o cardápio do que eles. Cada um escolhia o que quisesse e, mesmo assim, ao final, lá vinha o reparo dele ao prato que escolhera. Numa certa época cheguei a pensar em não convidá-los mais, porque aquilo começava a ficar desagradável para mim. Parecia uma indelicadeza gratuita, diante do convite, com o qual eu pretendia retribuir as atenções recebidas dele. E quando eu já estava nesse ponto, foi que me aconteceu o “estalo de Vieira”. De repente, como iluminado sei lá por que santo protetor, eu me dei conta de que ele precisava mesmo, desesperadamente, cometer aquela indelicadeza comigo. Pois o meu vizinho era um homem de poucos méritos profissionais que fossem conhecidos, sem maior expressão social, sem uma cultura geral mais consistente, com que pudesse impressionar as pessoas ou se sentir admirado por sua família. A única coisa em que ele se sentia importante, verdadeiramente, era quando ia para a cozinha e preparava os seus deliciosos pratos. Em matéria de culinária, ele era, de fato, “o cara”! E aí aparece alguém para levá-lo com a mulher e os filhos a conhecerem outros chefes de cozinha de qualidade? Tinha mais era que depreciar a culinária alheia, não tinha? Entendi a sua fraqueza num átimo, instantaneamente. E senti certo arrependimento pela minha irritação anterior, em razão de sua atitude. Assim, depois deste dia, continuei a convidá-los, de vez em quando, para irem almoçar ou jantar comigo. Ele continuou a desqualificar a culinária alheia e eu passei até a ajudá-lo nas críticas, pondo defeito no que não tinha. Mesmo assim, nós dois nunca deixamos de “raspar os pratos” que pedíamos nos restaurantes... Wagner Fontenelle Pessôa